As oficinas buscam, em seu fazer, construir o tempo do processo, carregam em sua essência a compreensão de que as vivências precisam de tempo para se tornarem experiências, precisam de tempo para que possam fazer conexões que abram a possibilidade para a construção de histórias, de vidas e de sujeitos.
Tempos modernos, contemporâneos: tempo tecnocêntrico, de Facebook e WhatsApp. Muito se especula, teoriza e fala sobre a mudança da relação do homem com o tempo na atualidade. Esta mudança comporta, em si, uma mudança na subjetividade (ou produção subjetiva) e, em tempos nos quais a rapidez é tomada como valor primordial, o tempo processual fica perdido entre nuvens de difícil conexão. A compreensão de processo fica distante para as experiências humanas.
Se a tecnologia apresenta à humanidade novas formas de subjetivação, os sintomas antigos basculam para uma reconfiguração sintonizada ao ideário simbólico vigente.
A velocidade com que artigos, vídeos, fotos e opiniões correm nas timelines não dão espaço de “respiro”, nem de processamento para mínima elaboração de conteúdos e o que vemos, quase sempre, é uma grande descarga verborrágica e imagética.
Ainda que novas formas de conexão social sejam possíveis com o advento da internet e das redes sociais, e muito se ganhou com isso sem sombra de dúvidas, o homem contemporâneo vive uma espécie de anestesia experiencial, na qual vivências não se processam em experiências e ficam retidas em cenas momentâneas - ou na busca incessante da garantia da tão cobiçada felicidade. Emerge um paradoxo: ao mesmo tempo em que vive uma grande ruptura de ideologias e se defronta com o vazio da falta - diga-se de passagem, condição do humano - adere à radicalidade da garantia de grandes verdades postas em blogs, redes sociais e na ampla variedade de novas técnicas especializadas em lidar com cada “setor” humano.
As velhas questões se reconfiguram e a clínica, atravessada que é pelos sintomas sociais, tem acompanhado (com ouvidos atentos) esse sujeito perdido frente às próprias demandas. Um sujeito distante da própria subjetividade, anestesiado para os afetos e, muitas vezes, com bastante dificuldade de formular/identificar questões que possam auxiliá-lo na construção de um espaço potencial para um processo de tratamento de seu sofrimento psíquico.
Na tentativa de acessar esse “novo” sujeito, velhas práticas reaparecem no cenário, também reconfiguradas “à moda da casa”.
Ao longo dos anos, muitos dispositivos de intervenção clínica, diferente da proposta nos enquadres tradicionais, surgiram dialogando com a teoria psicanalítica. Os psicanalistas “calçaram tênis”, saíram de seus consultórios e foram para a rua (na figura do A.T.), ocuparam instituições e estão dialogando com diferentes campos de saber, pondo em operação o exercício da transdisciplinariedade. Que os psicanalistas já não ocupam apenas as cabeceiras dos divãs, esta me parece questão superada.
Oficinas: ontem e hoje
No final da década de 70 e nas décadas seguintes, muitas instituições, organizações e centros de chamadas oficinas. Não faltam convivências exemplos implementaram de instituições que, em suas práticas em consonância as com os preceitos da Reforma Psiquiátrica, propuseram intervenções que iriam na “contramão” da proposta asilar, da lógica manicomial. Galletti (2004), em sua tese Oficina em Saúde Mental: instrumento terapêutico ou intercessor clínico?, apresenta primoroso mapeamento do uso de oficinas e seus efeitos nas práticas clínicas: “O recurso oficina, de caráter múltiplo e heterogêneo, tem encontrado solo fecundo para sua disseminação geralmente nas instituições identificadas com o ideário da Reforma, desempenhando um papel fundamental nos trabalhos institucionais, promovendo uma ampliação nos limites de atuação e contribuindo na elaboração de novos sentidos para a clínica.“ (p. 16) Ainda nos diz, sobre sua tese: “A perspectiva desse trabalho não é, de modo algum, traçar um novo modelo de intervenção: é entender essa prática de possibilidades infinitas como um dispositivo que coloca em xeque a clínica atual, isto é, permitir problematizar padrões terapêuticos cristalizados e, com isso, gerar perspectivas novas para esse campo de atuação.”(p.18) Se, naquele momento, a autora construía seu raciocínio a partir da clínica em Saúde Mental - sendo o dispositivo oficina usado de forma ampla como alternativa à logica manicomial, pensada em sua profunda relação com o trabalho (na dimensão do capital e na dimensão do artesanal) e dirigida à população estar-no-mundo que - em carecia tempos de modernos possibilidades, a que se diversificadas presta este dispositivo? Ele ainda se presta à resistência, a uma busca sustentada na lógica de uma construção artesanal poder subverter a lógica temporal dos downloads e uploads; sustenta seu caráter disruptivo e aposta na potência de um espaço de transmissão, de circulação de discursos diversos, de encontros. A partir do uso de diversos instrumentos das artes, teatro, marcenaria, culinária, música, o oficineiro aposta na possibilidade da construção de um espaço mais autônomo, horizontal e menos hostil, já que as oficinas são dirigidas à pessoas que ainda carecem de possibilidades diversificadas de ser e de estar no mundo. As oficinas buscam, em seu fazer, construir o tempo do processo, carregam em sua essência a compreensão de que as vivências precisam de tempo para se tornarem experiências, precisam de tempo para que possam fazer conexões que abram a possibilidade para a construção de histórias, de vidas e de sujeitos. O oficineiro que tem seu fazer atrelado à psicanálise tem a oferecer sua escuta. Não a escuta de uma questão formulada, “pronta” para análise, questão de um sujeito disponível ao encontro com o inconsciente; devemos considerar que a análise ainda é acessível a uma camada bem específica da população, o que não significa que a psicanálise deva ser dirigida e pensada apenas a estes sujeitos. Além do mais não se trata de transformar a oficina em divã. O oficineiro se defronta com o sujeito atravessado muitas vezes por questões da realidade marginal (psicóticos, por exemplo), carente de uma rede de suporte e transmissão (mulheres e homens no pós parto, por exemplo), marcados por uma síndrome biológica ou mesmos pessoas absolutamente aversivas e muito resistentes a qualquer tipo de propostas terapêuticas. Atento aos movimentos dos grupos ou indivíduos nos fazeres da oficina, o oficineiro pode mediar, ajudar a nomear, e frente a um precipitado de demandas, pode construir junto ao participante condições mais ternas para que este se aproxime do que gera sofrimento. Como diria Talita Pryler, as oficinas são um bom pretexto para o texto.
Oficineira: Uma experiência Minha trajetória como oficineira começou há 10 anos atrás, na APAE. Naquela ocasião pude desenvolver o projeto de oficina de culinária, e pela primeira vez em minha prática clínica pude experimentar o potencial deste dispositivo. As teorias do campo de A.T. pulsavam em minhas veias com a força que essa clínica comporta e a partir dessa experiência tive a oportunidade de problematizar e reorganizar as oficinas de cozinha – que até então era uma possibilidade para poucos usuários da unidade; pois era entendida como um lugar perigoso. A cozinha estava longe de poder ser compreendida como um espaço que auxiliasse na construção de autonomia. Uma importante mudança foi tornar as oficinas eletivas, as pessoas poderiam escolher que oficinas fariam parte de sua grade diária, e assim tínhamos a oportunidade de entender o que mobilizava os participantes a escolher cada oficina oferecida. Desconstruir o caráter ameaçador da cozinha foi a primeira tarefa. Depois, aproximar os participantes de seus hábitos alimentares foi uma forma de aproximá-los também de suas histórias e suas condições/limitações. Nas conversas ao redor da mesa as histórias dos pratos de família surgiam, lembranças que faziam sentido, assim os paladares e restrições ganhavam significação que cada que participante permitiam, estava por inserido. exemplo, Luan entender, as diferentes culturas em 30 anos, pôde compreender porque toda vez que sugeria que fizéssemos bauru de presunto, que sua mãe fazia tão bem e era um de seus pratos favoritos, Ruth, 28 anos, virava a cara fazendo careta. No entorno da mesa Luan compreendeu que Ruth era judia, e que para agradá-la talvez fosse melhor fazer um bauru de queijo e tomate, eles podiam então ser amigos, já que a careta não significava que Ruth não gostava de Luan. Muitas vezes os pais me mandavam receitas e a cozinha ia pouco a pouco se transformando em um lugar que possibilitava a construção de alguma autonomia. Através das receitas que faziam sentido aos participantes eles começaram a se aproximar das facas, do fogo, do forno e do fogão. Poder ir ao supermercado para comprar os ingredientes das receitas que faríamos aproximava-os do trânsito da vida adulta. Dona Lurdes, 68 anos, mãe de João, 40 anos, ficava espantada ao saber que o filho conseguia fazer omeletes e pôde finalmente dormir até mais tarde alguns dias, já que o filho podia fazer seu café da manhã sozinho. Os exemplos são muitos, nem todos eles comportam a poética dos felizes encontros. Por mais que quisesse, Felipe, 25 anos, não conseguia estar como seus colegas na oficina. Suas restrições motoras eram muitas e a cozinha era efetivamente perigosa para ele. Cristina, 28 anos, após queimar o dedo na panela de sopa, nunca mais colocou os pés na cozinha, preferiu mudar para a oficina de música. A oficina na cozinha se tornou um lugar de encontro, de troca, de re-conhecimentos e re-descobertas. Entre pãezinhos, bolinhos de chuva, omeletes, café e muita conversa, teceram-se relações e os afetos circularam. Para aquele momento, em que muitas mudanças no cenário institucional da APAE aconteciam, as oficinas traziam um importante questionamento sobre a inclusão, afinal incluir não tinha a ver apenas com dar sucata para os acompanhados fazerem arte. As oficinas abriram portas para podermos pensar as limitações, as relações e as questões que efetivamente estavam em jogo para os acompanhados naquela instituição - mostrando assim sua potência política e terapêutica.
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